Brasil registra 1.338 feminicídios na pandemia, com forte alta no Norte e no Centro-Oeste
O Brasil registrou oficialmente em 2020 a morte de 1.338 mulheres por sua condição de gênero, assassinatos praticados em sua maioria por companheiros, ex-companheiros ou pretensos companheiros, como o que na última quarta-feira (2) matou a facadas a estudante de enfermagem Vitórya Melissa Mota, 22, na praça de alimentação de um shopping center de Niterói (RJ).
Os dados consolidados do ano passado, que tiveram 10 de seus 12 meses sob o efeito da pandemia da Covid-19, foram colhidos pela reportagem nas secretarias de Segurança Pública dos 26 estados e do Distrito Federal.
Em relação a 2019 houve uma alta de 2%, mas a violência contra as mulheres cresceu em níveis mais alarmantes no Centro-Oeste (14%) e no Norte (37%). Nordeste (+3) e Sudeste (-3) apresentaram pequenas variações. No Sul, houve queda de 14%.
Os números mostram que a violência contra a mulher tem trilhado uma trajetória de alta —o feminicídio cresceu 8% de 2018 para 2019, de acordo com dados atualizados—, apesar do endurecimento da legislação em anos recentes.
E o cenário pode ser ainda pior, já que não há padronização na coleta, análise e divulgação das informações por parte de alguns estados.
O Ceará, governador por Camilo Santana (PT), é um exemplo. O estado não discrimina em suas estatísticas públicas de criminalidade o feminicídio. Em resposta à reportagem, a Secretaria de Segurança Pública disse ter registrado apenas 27 casos em 2020, o que colocaria o estado como o de menor incidência do crime, no país, em relação ao tamanho da população.
No entanto, a Rede de Observatórios da Segurança, que reúne órgãos acadêmicos e da sociedade civil de cinco estados, identificou 47 casos de feminicídio no Ceará em 2020, quase o dobro do que informam as autoridades estaduais.
Dossiê elaborado pelo Fórum Cearense de Mulheres e pela Articulação de Mulheres Brasileiras afirma que em 2018 o estado registrou apenas 5,6% dos assassinatos de mulheres como feminicídio, dados que “vão na contramão de todos os estudos sobre homicídio de mulheres”.
A Secretaria de Segurança Pública do Ceará afirmou que a razão pela qual diverge da maioria dos outros estados, que divulgam publicamente essas informações, diz respeito à proteção de dados pessoais sensíveis. Sobre a discrepância de registros, afirmou que a classificação de feminicídio cabe, baseada em critérios técnicos, ao delegado ou à delegada da Polícia Civil que investiga o assassinato.
Dos 13 estados que registraram aumento da violência contra as mulheres em 2020, 12 são do Norte, Centro-Oeste ou Nordeste. Apenas Minas Gerais (alta de 4%) está fora desse grupo.
Dos estados que historicamente têm grande número de feminicídios, o Mato Grosso, governado por Mauro Mendes (DEM), teve expressivo aumento em 2020, 59%. É também onde, proporcionalmente à sua população, mais mulheres são mortas por sua condição de gênero.
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública do estado afirmou acreditar que o isolamento social seja uma das explicações para o agravamento da situação, além da mudança cultural e da capacitação dos policiais para enquadrar os crimes como feminicídio. O órgão diz ainda ter havido queda nesse tipo de crime nos primeiros meses de 2021.
Sobre as ações preventivas e de combate, a secretaria afirmou ter uma câmara formada por várias entidades governamentais e da sociedade civil, além de equipe da Polícia Militar treinada para acompanhamento de mulheres sob risco (as patrulhas Maria da Penha) e serviços de WhatsApp em delegacias especializadas de defesa da mulher para denúncias e atendimento psicológico —em Cuiabá, (65) 99966-0611; em Várzea Grande, (65) 98408-7445, e em Rondonópolis, (66) 99937-5462.
Entre as unidades da federação onde houve redução dos registros, destaque para Distrito Federal (-47%), Rio Grande do Norte (-38) e Sergipe (-33%). Em relação ao tamanho da população, Ceará (com a ressalva descrita acima) e Rio Grande do Norte foram os que tiveram, em 2020, o menor índice de mulheres mortas a cada 100 mil habitantes.
No início de 2020, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, chegou a sinalizar que haveria a implantação de um sistema nacional de consolidação e divulgação de estatísticas de feminicídio.
Moro foi demitido em abril daquele ano. Até hoje, o governo não tem esse sistema. No programa nacional de divulgação das estatísticas de criminalidade, o Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), as mulheres mortas por sua condição de gênero entram no cômputo geral de homicídios dolosos.
O ministério afirmou, por meio da assessoria, que por falta de padronização entre os estados para a tipificação de feminicídio, a pasta criou um projeto denominado Portal Digital, que se encontra em desenvolvimento “para a formatação de uma ferramenta única, uniforme e confiável de dados de violência contra a mulher, incluindo aí, os feminicídios”.
O ministério disse ainda que enviou aos estados um protocolo nacional de investigação e perícias nos crimes de feminicídio.
Especialistas ouvidas pela reportagem defendem, entre outros pontos, uma ação robusta e continuada da abordagem das questões de gênero nas escolas e o aperfeiçoamento do sistema de coleta de informações.
Elas afirmaram ainda haver indicativos de aumento do risco à mulher na pandemia, além do provável impacto negativo das políticas de afrouxamento das regras de controle de armas e munição patrocinadas pelo presidente Jair Bolsonaro.
“Há muitos indícios e estudos em outros países que apontam para o agravamento da violência contra as mulheres em situação de crises, como tem sido na pandemia”, afirma Aline Yamamoto, especialista em Prevenção e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da ONU Mulheres Brasil.
Em relação às armas, ela diz ser possível uma análise mais categórica. “Ter uma arma leva a uma probabilidade muito maior de haver vítima de assassinato em casa, que geralmente são mulheres e crianças.”
Ela defende a prevenção como medida prioritária, em uma mudança de comportamento que só ocorrerá pela correta abordagem das causas da violência nas escolas, passando pela efetiva punição dos agressores e pela educação da sociedade e autoridades no sentido de que não se repitam episódios em que as vítimas é que acabam sendo “julgadas”.
Prática machista ainda comum ainda em alguns tribunais, a tentativa de transformar a vítima em culpada talvez tenha como o maior exemplo clássico, no Brasil, o caso de Ângela Diniz, assassinada em 1976 com quatro tiros na cabeça pelo companheiro, o playboy Doca Street. O caso foi recontado no ano passado no podcast “Praia dos Ossos”, uma produção da Rádio Novelo.
A defesa do criminoso tentou emplacar a tese de que ele deveria ser absolvido por ter agido “em legítima defesa da honra”, já que a mulher era uma “vênus lasciva” movida a cocaína, álcool e relações “anormais” com muitos homens.
No primeiro julgamento, em 1979, Doca Street foi condenado a brandos dois anos, cumpridos em liberdade. A pressão de ativistas do feminismo mudou a sua sorte e, em 1981, em novo julgamento, ele foi condenado a 15 anos de prisão. O assassino de Ângela Diniz, entretanto, cumpriu três anos em regime fechado, dois no semiaberto e dez em liberdade condicional. Ele morreu em dezembro de 2020, aos 86 anos de idade, após sofrer um infarto.
Alice Bianchini, vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil, afirma que a igualdade entre homens e mulheres é um fator de diminuição da violência e defende a priorização de ações voltadas às crianças e adolescentes.
“Hoje a situação é um reflexo dessa falta de políticas públicas de discutir questões de gênero dentro das escolas”, afirma. Bianchini sugere que as campanhas de conscientização envolvam os homens, lembrando que um dos pontos não implantados da Lei Maria da Penha (de 2006) é a criação de centros de educação e reabilitação para agressores.
“As campanhas que a gente tem são: mulher que sofre violência, denuncie. Mas 62% têm medo de denunciar por medo de vingança do agressor. Um discurso que eu acho importante é: se você conhece um homem que pratica violência com mulher, converse com familiares desse homem, eles precisam saber o que está acontecendo.”
Para ela, o aumento de registro de armas no país, que quase dobrou em 2020, é um fator que aumenta a vulnerabilidade das mulheres.
“Existe uma alerta internacional em relação ao Brasil feito pela ONU, chamando atenção para esse fato. Há duas questões importantes quando se usa arma: uma é o índice de letalidade, muito grande. A segunda é o quanto a arma de fogo facilita a prática do crime porque é um tipo de crime que se pratica sem sujar as mãos de sangue. Aponta-se a arma e dispara o gatilho.”
A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo, diz que é preciso multiplicar ações de prevenção, como a expansão das patrulhas Maria da Penha, a possibilidade de registro online de violência doméstica e campanhas como a que possibilita a mulheres ameaçadas pedir ajuda por meio de códigos (um xis vermelho escrito na palma mão ou em um pedaço de papel).
“É importante atacar a violência contra a mulher antes de virar feminicídio. Quando mais eficiente a gente é para lidar com as agressões prévias, menor é o risco”, diz Carolina, que também aponta para o aumento do risco em razão do estímulo à aquisição de armas.
Para ela, é preciso a conexão de várias áreas do poder público. “Tem que ter também estrutura de apoio, apoio financeiro, abrigos para que as mulheres possam ir com as crianças. As medidas necessárias são muito interdisciplinares, não pode ser só policial. Precisa de serviço de assistência social, saúde, educação, todo mundo conectado nessa pauta”. 9Bahia Notícias)