Brancos são quase o dobro dos negros entre vacinados contra Covid no Brasil
Maria José Souza tomou a vacina no início de fevereiro; Rosane Souza, no fim de janeiro. Uma tem 88 anos, a outra, 63. Uma integra o grupo de risco da Covid-19, a outra é enfermeira aposentada após quase quatro décadas de dedicação à Marinha.
Mãe e filha, moradoras da zona oeste carioca, representam três grupos ainda minoritários no país: o de idosos negros, o de profissionais da saúde negros e, consequentemente, o de brasileiros negros imunizados contra o novo coronavírus.
Microdados do Ministério da Saúde compilados pela Folha mostram que os brancos (38%) representam quase o dobro dos pardos ou pretos (21%) entre os vacinados até agora. Os amarelos são 12%, os indígenas equivalem a 2%, e outros 27% não tiveram a cor informada.
Em números absolutos, foram 3,9 milhões de doses aplicadas em brancos e 2,2 milhões em negros até segunda-feira (22), considerando apenas a primeira dose. Vale lembrar que esses dados têm uma defasagem em relação às quantidades divulgadas pelos estados.
O primeiro fato que explica essa desigualdade é o perfil dos trabalhadores da saúde, que compõem o maior número de vacinados até agora. Até 2010, censo mais recente do IBGE, só 15% dos médicos e 38% dos funcionários da enfermagem ou parto se identificavam como pardos ou pretos.
“A grande maioria dos vacinados teve acesso ao nível superior ou ao menos ensino médio. Inicialmente houve uma discussão sobre incluir faxineiros, administrativos etc. dos hospitais, mas isso ainda não aconteceu de forma generalizada”, diz Denize Ornelas, do grupo de saúde da população negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
A segunda explicação é a distribuição de idade da população em geral. Os brancos representam cerca de seis a cada dez idosos entre 80 e 99 anos no país, outra parcela que já foi majoritariamente imunizada em quase todos os estados.
Pelos cálculos da demógrafa Dalia Romero, coordenadora do grupo de estudos sobre envelhecimento da Fiocruz, a média de idade ao morrer para esse grupo era de cerca de 68 anos, enquanto para negros era de apenas 60 anos em 2017.
Os motivos disso são uma soma de índices socioeconômicos extremamente desiguais que o Brasil já conhece bem: violência, fome, falta de acesso à educação e à saúde (principalmente de alta complexidade) e profissões ou moradias de maior risco.
Para ficar em alguns exemplos, um jovem preto ou pardo tem quase três vezes mais chances de ser assassinado do que um jovem branco. Planos de saúde também são privilégio de apenas dois a cada dez negros, contra quatro a cada dez brancos.
“A pessoa que tem 80 anos hoje nasceu em 1940, portanto não teve acesso a tantos antibióticos e vacinas como agora. Só esse fato já criava uma grande desigualdade. Hoje sobreviver com fragilidades é mais fácil, mas nessa geração não havia possibilidades”, acrescenta Romero.
A última Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE (2019) mostra que brancos curiosamente registram mais doenças crônicas como colesterol alto, câncer e hipertensão arterial (nesse caso, comparadas a pardos). Mas, segundo a demógrafa, esses dados na verdade indicam outro problema.
“Não é porque a população pobre e negra está mais saudável, e sim por falta de acesso a esse tipo de diagnóstico, que exige um grau de complexidade. Por isso eu acho que, quando começar a vacinação dos doentes crônicos, a desigualdade vai aumentar ainda mais”, afirma.
A médica de família Ornelas levanta outra questão, o acesso aos postos de imunização. “Não temos dados da vacinação por bairro para saber, mas me parece mais difícil um idoso de periferia ir ao estádio do Pacaembu, por exemplo. Outra possibilidade é que a rejeição à vacina seja maior nesse público, até pela posição de alguns líderes religiosos”, diz.
As proporções de cor dos idosos e profissionais da saúde no Brasil também explicam por que os amarelos, que se identificam com a origem asiática, somam uma porcentagem tão alta de vacinados contra a Covid até agora: 12%, sendo que são apenas 1% da população.
Eles tinham uma expectativa de vida de quase 74 anos em 2017, ante uma média de 62 anos no país. Estão concentrados em locais com melhores condições socioeconômicas, como São Paulo, e também são frequentes nas faculdades de medicina.
Outro fato que chama atenção nos números é a falta de informações sobre raça que persiste nos registros nacionais após um ano de pandemia, contrariando uma portaria do próprio Ministério da Saúde que tornou o preenchimento desse campo obrigatório pelos profissionais de saúde desde 2017.
O Brasil não sabe a cor de 27% dos imunizados nem de 20% dos internados ou mortos pelo vírus. “O racismo estrutural faz as pessoas acharem que não é um dado relevante, e os órgãos de gestão também não fazem ações de capacitação. Mas se eu sei onde está morrendo mais, posso alocar mais recursos e profissionais”, argumenta Ornelas.
Na opinião das duas especialistas, deveria haver algum mecanismo no Plano Nacional de Imunização contra a Covid que considerasse as diferenças entre brancos e negros, que têm menos alcance na saúde e se expõem mais à doença trabalhando fora de casa.
Pretos e pardos têm uma proporção de mortes ligeiramente maior do que sua proporção de internações pela Covid. Eles totalizam 38% dos internados e 41% dos mortos, enquanto brancos são 41% dos internados e 40% dos mortos, nos casos com distinção de cor.
No estado de São Paulo, o excesso de mortes não violentas registrado entre negros em 2020 foi mais do que o dobro do que aquele registrado entre brancos -considerando o número de óbitos em geral que seria esperado para o período segundo a série histórica.
“A palavra prioridade dá a entender que negros passariam na frente, mas não é isso, é dar condições diferentes para necessidades diferentes. Por exemplo, se há menos negros idosos, por que não adiantar a vacinação de negros mais novos?”, afirma Ornelas.
“Se o critério é o maior risco, ou até a economia, quem são os principais funcionários dos serviços nas ruas, vigiando as escolas, dirigindo os ônibus, cuidando dos idosos? Pobres e negros”, pontua Dalia Romero, que defende a prioridade também para indígenas (com expectativa de vida de apenas 45 anos) não aldeados.
Bahia Noticias