Estados mais ricos veem desequilíbrio de renda entre negros e brancos piorar
Nas últimas duas décadas, os estados mais ricos do país viram aumentar o desequilíbrio de renda entre negros e brancos. Considerando todo o Brasil, a desigualdade de rendimentos ficou estagnada, mesmo com o avanço na democratização da educação superior.
Mantido o ritmo atual, o país deve demorar mais de 400 anos para atingir a igualdade de renda entre negros e brancos, enquanto o equilíbrio para a educação deve ser conquistado em 34 anos.
As conclusões são da mais recente edição do Ifer (Índice Folha de Equilíbrio Racial), que considera os avanços e retrocessos na representatividade de pretos e pardos em relação a brancos entre 2001 e 2021.
O Ifer é um indicador que dimensiona a distância entre a desigualdade racial e um cenário hipotético de equilíbrio, em que a presença de negros nas faixas de maior renda ou escolaridade, por exemplo, reflete seu peso na população a partir dos 30 anos.
Ele foi elaborado em 2021, pelos pesquisadores Sergio Firpo, Michael França (ambos colunistas da Folha de S.Paulo) e Alysson Portella. A divulgação deu origem ao projeto A Cor da Desigualdade no Brasil, que foi organizado pelo Núcleo de Estudo Raciais do Insper e pela jornalista Érica Fraga.
Além da renda, a ferramenta capta o equilíbrio no acesso ao ensino superior e na longevidade, variando entre -1 e 1 ponto. Quanto mais próximo de -1, maior é a representação dos brancos em relação a de negros; já valores próximos a 1 apontam um cenário em que pretos e pardos estariam em vantagem.
Os dados mostram que, enquanto o indicador de formação de nível superior teve um avanço mais robusto, de 0,223 ponto no período, o indicador nacional de renda melhorou apenas 0,068 ponto, de -0,516 para -0,448.
Para os estados, os formuladores do índice construíram uma linha do tempo que vai de 2004 a 2021, considerando as médias móveis de três anos.
Os estados mais ricos do país ficaram na lanterna. Em São Paulo, o indicador teve um retrocesso de 0,109 ponto, passando de -0,514, em 2004, para -0,623, ambos no patamar de dominância branca -mas se aproximando do pior nível do índice, em que os negros estariam completamente excluídos. No Rio de Janeiro, a piora foi de 0,034 (de -0,514 para -0,623 ponto).
Na outra ponta, o Amapá foi o único estado a deixar o patamar de dominância branca e atingir o chamado equilíbrio relativo: passou de -0,256 para -0,160 ponto em cerca de duas décadas.
“Regiões com maior concentração de renda, como a Sudeste, possuem obstáculos adicionais para a população negra, devido aos privilégios da dominância branca”, avalia Portella.
Apesar de terem um mercado de trabalho mais dinâmico, os estados do Sudeste pecam pelo maior isolamento das populações pretas e pardas em suas periferias, reforçando dinâmicas excludentes em um mesmo município, diz.
“Em regiões mais ricas, há uma uma estratificação mais visível, com repressão à mobilidade social. Nas grandes cidades do país, o negro parece condenado a viver no estrato social em que nasceu”, afirma Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá, que apoia projetos de inclusão da população negra.
Entre 2004 e 2021, o Ifer piorou 0,002 ponto no Sudeste, o que aponta uma estagnação na desigualdade de renda da região. Os maiores avanços ocorreram no Centro-Oeste (de 0,173), Nordeste (0,133) e Norte (0,096).
Na região Centro-Oeste, onde o indicador de equilíbrio de renda mais avançou no período, o menor isolamento da população negra nas periferias acaba facilitando a queda da disparidade de renda, conforme os pesquisadores já haviam demonstrado na edição de 2021 do Ifer.
DESIGUALDADE DE OPORTUNIDADES TRAVA AVANÇO NA RENDA
Para especialistas, barreiras sociais impedem que a menor desigualdade racial na educação também se reflita em um maior equilíbrio na renda, mesmo para pessoas com igual formação.
“A rede de contatos dos jovens de famílias brancas e ricas acaba operando como um mecanismo de exclusão indireta. Um branco e um negro se formam na USP, mas o branco de alta renda teve acesso a uma rede de contatos mais robusta e pôde adquirir mais competências ao longo da vida -ele viajou para o exterior, aprendeu mais um idioma”, diz França.
O jovem negro de baixa de renda, acrescenta o pesquisador, mesmo com o diploma superior, pode até conseguir uma mobilidade, mas lacunas na acumulação de competências e contatos ao longo da vida, em comparação com a trajetória de um branco de alta renda, o prejudicam.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) anual, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostram que o rendimento médio mensal para trabalhadores brancos no país era de R$ 3.202 em 2021, ante R$ 1.857 para os negros.
Segundo Firpo, a forma mais eficiente de reduzir a desigualdade de oportunidades é integrar desde cedo crianças de diferentes origens. “Não dá para achar normal que uma parte da população estude em uma escola bilíngue e alguns tenham acesso apenas à comunidade em que vivem.”
Ele acrescenta que o futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem o desafio de fazer com que a educação volte a ter uma pauta inclusiva e que olhe para a população mais vulnerável.
“O MEC [Ministério da Educação] deve voltar a ser o órgão que organiza esforços e catalisa essas políticas descentralizadas, e que aprende com as políticas que deram certo no país.”
“Historicamente, em momentos de crise, mesmo havendo uma redução da desigualdade, as pessoas negras acabam sendo afetadas mais do que as brancas, pois a rede de proteção social é menor”, diz Marcelo Paixão, economista e professor da Universidade do Texas (EUA).
O professor avalia que o racismo dificulta o aproveitamento pela população negra das políticas públicas existentes para redução da desigualdade de renda. Dessa forma, ainda que uma família negra de baixa renda tenha acesso aos mesmos benefícios que uma família branca pobre, o preconceito racial continuará deixando os negros em desvantagem, reduzindo as suas chances de avançar.
“O investimento, por si só, em políticas universais, como a Lei de Cotas, não é capaz de reduzir a desigualdade. Não podemos confundir a ampliação do acesso com a redução das desigualdades”, afirma Harvey, do Baobá.
“O racismo entranhado na sociedade não será superado da noite para o dia. Eu, por exemplo, já fui substituto de duas ministras de Estado, mas continuo sendo uma pessoa negra. Sempre que entrar em um ambiente, o primeiro olhar que vou receber será o de que não deveria estar frequentando aquele lugar.”
Ele diz estar otimista com a maior conscientização da sociedade, que tem se mobilizado mais para buscar a equidade racial. Setores da sociedade civil e do empresariado passaram a se manifestar de uma forma que nunca vi neste país, complementa Harvey.
Autor de “A Sociedade Desigual – Racismo e Branquitude na Formação do Brasil”, o economista Mário Theodoro considera que é preciso avançar em políticas afirmativas para o mercado de trabalho que sejam semelhantes ao que foi aplicado pela Lei de Cotas nas universidades.
Reportagem recente da Folha de S.Paulo apontou que a Lei de Cotas para negros em concurso público, de 2014, ajudou a elevar o número de servidores pretos e pardos, mas esse avanço estagnou durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Para Theodoro, a iniciativa de abrir programas de trainee voltados para jovens negros são louváveis, mas o governo também pode reforçar as políticas afirmativas em conjunto com as empresas privadas.
“Governo e setor privado são grandes empregadores e podem atuar em conjunto”. Para o setor privado, podem ser colocadas condições para que a empresa só participe de licitações públicas caso tenha ações afirmativas, diz.
“Vai ter muita resistência, vivemos em um país desigual e onde a desigualdade se tornou o cerne da sociedade. Qualquer projeto que afronte essa lógica será contestado, mas é preciso insistir”, diz o pesquisador.
Fonte: BN