O projeto que quer testar 1 mil asilos para covid-19 no Brasil
De 24 mortes por covid-19 confirmadas até o final de maio no município de Piracicaba, interior de São Paulo, 16 foram de idosos que viviam em instituições de longa permanência, chamadas popularmente de asilos. O caso chama a atenção para um problema que vem se repetindo pelo mundo: a propagação rápida e fatal do coronavírus entre idosos vivendo nesses locais.
Em uma declaração de abril de 2020, o diretor regional da Organização Mundial de Saúde para a Europa, Hans Henri Kluge, chamou a atenção para o problema, afirmando que cerca de metade das mortes por covid-19 no continente até então eram de idosos vivendo em instituições de longa permanência. Nos Estados Unidos, até o início de maio, um terço de todas as mortes era de pessoas que viviam ou trabalhavam nesses locais, segundo um banco de dados do jornal The New York Times.
No Brasil, 85% das mortes são de idosos, mas não há um levantamento sobre quantas delas ocorreram em asilos.
Segundo um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2011, que ainda hoje é a pesquisa mais abrangente sobre o assunto, havia então 83 mil idosos em instituições para longa permanência. A pesquisadora em saúde pública Michele Souza e Souza, membro do Grupo de Pesquisa em Emergências em Desastres, da Fiocruz, avalia, no entanto, que esse número aumentou.
“Uma rede de cuidados que antes era mais disponível para os idosos está ficando menos disponível. Parentes mulheres, que ocupavam o papel de cuidadoras, têm ido para o mercado de trabalho. Tem aumentado a demanda pelas instituições de longa permanência, que concentram pessoas com comorbidades, mais vulneráveis, e que passam muito tempo em contato com cuidadores em ambientes fechados”, diz.
Em entrevista à BBC Brasil, o coordenador de Vigilância em Saúde de Piracicaba, Moisés Taglietta, afirma que as mortes na cidade se concentraram principalmente em duas instituições, o Lar Betel, que não tem fins lucrativos e perdeu 10 residentes entre 82, e o Bem-Viver, que tem fins lucrativos e no qual morreram 6 residentes de 16. Neste último, o proprietário se suicidou após a crise.
Um artigo publicado em março de 2020 por pesquisadores em saúde pública da Universidade de Harvard cita alguns dos fatores que fazem com que os idosos em asilos sejam mais vulneráveis à covid-19.
“Residentes em asilos são, tipicamente, adultos mais velhos, com doenças crônicas. Assim, são particularmente suscetíveis a complicações severas e mortalidade pela covid-19. Ao contrário de um hospital, asilos são o lar das pessoas. Frequentemente, residentes vivem próximos uns aos outros, por isso pode ser muito desafiador remover ou colocar em quarentena os residentes, quando ficarem doentes. Além disso, cuidadores auxiliam os residentes de quarto em quarto, o que torna mais difícil limitar a propagação do vírus”, diz o artigo.
Os pesquisadores ressaltam ainda que “embora muitos prefiram nem mesmo pensar sobre asilos, eles são uma rede de segurança essencial para os adultos velhos mais frágeis, e uma parte da malha de nossa sociedade”.
Protocolo é testar apenas quem tem sintomas
Em entrevista à BBC Brasil, Luiz Adalberto dos Santos, presidente voluntário do Lar Betel, diz que a instituição vinha seguindo protocolos de assepsia determinados pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde março.
Ele diz que o Lar Betel conta com uma médica, que determinava o afastamento dos funcionários a partir de qualquer sintoma de gripe. Os afastados procuravam os serviços públicos e faziam os testes rápidos.
Esse tipo de testes é feito a partir de sangue ou plasma, e serve para detectar a presença de anticorpos do coronavírus no corpo das vítimas, conhecidos como IgM ou IgG. Os resultados levam entre 10 e 30 minutos para sair.
No caso do Lar Betel, os primeiros testes rápidos foram realizados no final de março, mas os resultados positivos para covid-19 chegaram apenas em 18 de abril.
Nesse momento, no entanto, já havia funcionários afastados, e alguns idosos com casos graves a ponto de serem encaminhados para internação em hospitais. “É bem provável que a contaminação tenha acontecido pela entrada e saída de funcionários, que vão para suas casas”, afirmou Santos.
A partir do resultado dos testes rápidos, a gestão do asilo pediu apoio da Equipe de Vigilância Epidemiológica do município, que foi até o local e realizou testes rápidos sobre todos os residentes e funcionários, mesmo sem sintomas.
Segundo informações da Anvisa, esses testes rápidos são, no entanto, eficazes apenas cerca de oito dias após os primeiros sintomas de covid-19. Eles frequentemente dão falsos positivos, ao detectarem anticorpos que podem ter sido produzidos pelo organismo após o contato com outros tipos de coronavírus.
Além disso, se o teste é realizado antes dessa janela de oito dias, é muito possível que não detecte nenhum anticorpo, resultando em falsos negativos. O teste rápido pode também detectar anticorpos que permanecem no organismo mesmo após o vírus ter sido eliminado. Por isso, não é o suficiente para estabelecer um diagnóstico definitivo de covid-19.
Segundo Santos, “esse teste protocolar nos causou muita apreensão, porque sabemos que ele poderia ser negativo ou positivo dependendo do momento em que a pessoa tinha tido o contato com o vírus”.
Mesmo isolando aqueles que testaram positivo, ainda restava dúvida se o vírus poderia estar presente em outras pessoas capazes de transmiti-lo. “Foi por isso que decidimos fazer os testes moleculares”, diz Santos.
Também conhecidos como PCR, os testes moleculares são feitos a partir da coleta de secreções respiratórias, na faringe ou na laringe, com uso de um cotonete com haste flexível. Esses testes não buscam detectar anticorpos, mas sim o material genético dos próprios vírus. São realizados em laboratórios, podem demorar alguns dias para sair, e determinam definitivamente se havia um vírus no corpo no momento em que as amostras foram coletadas.
Apesar de o governo federal ter, oficialmente, a meta de testar 24,6 milhões de brasileiros com o PCR ainda em 2020, esses testes têm sido pouco frequentes no Brasil.
Até o dia 26 de maio, apenas 871,8 mil haviam ocorrido. A média semanal de testagem é de apenas 46,1 mil testes, e havia então mais de 3,7 mil óbitos aguardando exames para determinar se a causa da morte fora mesmo covid-19.
O protocolo oficial para testagens diz que o PCR não deve ser aplicado sobre pessoas sem sintomas compatíveis com a covid-19, o que abre espaço para que pessoas assintomáticas transmitam o vírus a outras.
“Tem um prazo até mesmo para que pessoas sintomáticas sejam testadas pelo protocolo oficial. Ao longo desse timing, as pessoas que não forem isoladas estarão transmitindo, e é essa situação que acomete os lares de idosos e causa o avanço do vírus”, diz Santos.
Protocolo foi contornado com ajuda do Rotary
Não há no Brasil um programa governamental para testagem em massa em instituições de longa permanência.
O Lar Betel só foi capaz de contornar o protocolo e realizar os testes moleculares com ajuda do Rotary Club, uma associação de clubes iniciada em 1905 nos Estados Unidos. Ela declara o objetivo de “estabelecer a paz e a boa vontade no mundo”, e contabiliza no Brasil 2.305 unidades e 52.148 membros.
O asilo foi a primeira instituição de longa permanência a realizar testes por meio do programa “Corona Zero”, do Rotary, que pretende testar todos os trabalhadores e residentes de 1 mil asilos no Brasil.
Entre 77 funcionários, 35 testaram positivo, e o restante, negativo. Aqueles que testaram positivo foram afastados.
Todos os 61 idosos do asilo foram testados, e 39 deles estavam infectados com o vírus. “Foi então que conseguimos separar definitivamente quem eram os idosos positivos e quem eram os idosos negativos, que não tinham o vírus”, diz Santos.
O protocolo da Anvisa determina que, após a identificação de casos suspeitos ou com confirmação de covid-19, os residentes devem ser isolados em quartos individuais, se possível, ou, como segunda opção, em quartos destinados àqueles infectados. Mas não são todas as casas de repouso que têm infraestrutura para fazer esse tipo de isolamento corretamente.
Souza e Souza, da Fiocruz, ressalta que “esses locais não são unidades de saúde, são entidades de assistência social, e não costumam ter estrutura física para isolamento e tratamento”.
Como a maiora dos idosos do Lar Betel estava infectada, a instituição decidiu isolar em um hotel, em quarentena, aqueles que haviam sido testados negativo — 28 dos idosos.
“A doença é muito severa. E, nessa faixa etária, as sequelas são muito visíveis para os idosos, que já têm outras comorbidades. Alguns faleceram depois de voltarem do hospital para a instituição”, diz Santos.
Nove chegaram a ser internados. Até o dia 29 de maio, 10 desses idosos haviam falecido, outros dois continuavam internados, e três haviam voltado para suas casas.
“Com o agravamento da crise, tanto os funcionários quanto os idosos se viram muito abalados, porque viram residentes falecendo, a rotina de tranquilidade sucumbiu. Embora idosos, eles têm ciência de toda a situação”, afirma Santos. “Sabem que há um vírus, uma doença perigosa para eles. E veem colegas, amigos, pessoas do dia a dia sendo acometidos, internados. Nossos funcionários foram discriminados por pessoas que simplesmente diziam que eles levavam o vírus para todo lado. Isso obviamente causa preocupação, estresse.”
No dia 20 de maio, 28 idosos que haviam sido isolados no hotel voltaram ao Lar Betel. A instituição diz que está criando um programa de testagem periódica, como forma de evitar uma nova disseminação do vírus. “Agora, falando em nível de Brasil, muitos asilos sequer têm como testar”, diz o presidente.
O segundo asilo a realizar os testes em Piracicaba foi o Bem Viver. Segundo Moisés Taglietta, de 28 idosos, 11 testaram positivo para a covid-19. E, de 15 funcionários, 11 testaram positivo. “Talvez tenha sido proporcionalmente o pior de todos, aquele em que o dono acabou ficando tão desesperado, com a pressão de todo lado, que acabou se enforcando.”
A situação foi menos grave em outras instituições. Em entrevista à BBC Brasil, Gisele Feitor, enfermeira do Nosso Lar Casa de Repouso de Idosas, voltado a mulheres, diz que 35 residentes e 29 funcionários foram testados para coronavírus, mas nenhum deles deu resultados positivos.
A instituição também está em isolamento, e as visitas são por videochamadas. “Temos feito atividades para tentar suprir a falta do toque, do aconchego da família, com videochamadas. Tínhamos músicas, uma moça que vinha tocar para elas, mas as visitas estão suspensas, e colocamos músicas para elas ouvirem com caixas de som”, conta.
O isolamento físico dos idosos e a redução do toque estão entre as medidas defendidas no artigo dos pesquisadores de Harvard que ressalta, no entanto, que isso “impõe custos sociais e emocionais significativos aos residentes, que já são isolados”.
Os pesquisadores recomendam ainda “educação proativa dos cuidadores quanto a lavagem das mãos, uso de equipamento de proteção”. E a garantia do direito de que funcionários possam deixar de ir ao trabalho caso fiquem doentes.
Como funciona o programa do Rotary
Entre o dia primeiro e o dia 29 de maio, o projeto do Rotary testou 4.301 idosos e funcionários de instituições para longa permanência, em uma parceria com o Instituto Fleury. “Os casos estão estourando, todos assintomáticos, em vários lugares”, afirmou em entrevista à BBC Brasil Humberto Silva, membro da associação e responsável pelo programa. Em um asilo em Santo André, na Grande São Paulo, por exemplo, 22 dentre 50 idosos estavam contaminados com o coronavírus.
Silva diz que a ideia de estabelecer um programa de testagem focado no isolamento em massa em asilos surgiu por avaliar que, nos Estados Unidos e na Europa, “houve um abandono dos asilos”.
Ele cita um caso que ocorreu em abril na cidade de Andover, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Após uma denúncia anônima, a polícia encontrou, empilhados em um dos maiores asilos do estado, 17 cadáveres de possíveis vítimas do coronavírus, incluindo os de duas enfermeiras.
No subúrbio de Dorval, próximo a Montreal, no Canadá, funcionários de um asilo com 131 atendidos deixaram seus postos com medo de contrair covid-19. Dezenas de idosos foram abandonados, ficando sem acesso à comida, e 31 deles morreram em abril.
“Faltou estrutura para testar idosos e, rapidamente, separar os doentes”, disse. Ele avalia que o protocolo de testar com PCR apenas aqueles com sintomas, estabelecido inclusive pela OMS, “é um erro fatal” nos asilos. “Pelo menos 25% das pessoas nunca vão apresentar sintomas, e elas continuam transmitindo a doença. Quando se percebe, a doença se espalhou pelo asilo inteiro e matou um monte de gente”, afirma.